Por Sthela Simões Freire - Presidente da Comissão da Mulher Advogada OAB subseção 52.
Ainda que grande partes dos municípios brasileiros
tenham delegacias especializadas das mulheres, existem no Brasil, apenas 112
varas especializadas em violência doméstica, sendo que mais da metade delas
estão localizadas nas principais capitais dos Estados, ao passo que o maior
número de violência ocorre nas cidades com menos de 100 mil habitantes. O que
significa que a defesa, a prevenção e o enfrentamento ainda não chegam onde tem
que chegar.
Em 07 de agosto de 2006 foi sancionada a Lei
11.340, batizada de Lei Maria da Penha em homenagem a Mulher que se tornou
símbolo da luta contra a violência de gênero, em especial a violência
doméstica, após ter sofrido inúmeros ataques de seu então marido, culminando
com duas tentativas de assassinato e um tiro que lhe deixou paralítica, sem que
lhe fosse oferecido quaisquer mecanismos de defesa e de justiça que impedisse o
seu agressor.
Ainda que o caminho a ser percorrido para que a
lei seja aplicada em todos os seus aspectos e da forma mais ampla possível
esteja bem longe de ter encontrado o seu fim, é fato, inconteste, que a Lei é
um divisor de águas quando se fala em violência contra a mulher, sobretudo por
que toca na ferida que ninguém quer tocar. Ela expõe o que acontece dentro de
casa e, mais ainda, o fato de que a violência não distingue classe social.
Após anos e anos de homens sendo inocentados em
sua brutalidade conjugal ao abrigo da “legítima defesa da honra”, vem uma lei
pra dizer que em “briga de marido e mulher devemos meter a colher”. Uma lei,
que se torna a principal ferramenta judicial a tutelar os direitos das mulheres
agredidas no seu âmbito familiar, e que hoje se estende para todas as mulheres
independente de seu tipo de relação com o agressor, abrigando também as
transexuais, que se identificam como mulheres em sua identidade de gênero.
Mais do que ampliar o senso de justiça ao punir
agressores com uma pena mais severa do que as aplicadas anteriormente a sua
existência, a Lei Maria da Penha rompe a barreira dos problemas individuais,
atesta o fato de que a violência doméstica é um problema social e cultural
arraigado por anos numa sociedade machista e “dando nome aos bois”, traz a lume
outras formas de violência além da física, em especial a violência psicológica
e patrimonial, essa última até os dias atuais pouco comentada.
Considerada pela ONU a terceira mais avançada lei
de combate à violência doméstica de gênero, por melhor que seja, não consegue
caminhar sozinha. Ela depende da implementação de políticas públicas de modo a
dar suporte para todos os seus mecanismos, sobretudo aqueles que atuam na
prevenção. Melhor que uma mulher confortada é uma mulher que nunca tenha sido
agredida.

Muito se pergunta do porquê os números da
violência contra a mulher terem aumentado consideravelmente. A resposta é que
esse número provavelmente era muito maior, a diferença é que agora, confiantes
em um respaldo judicial e na mudança no entendimento de que isso não é normal e
não é aceitável, essas mulheres passaram a denunciar as agressões. O aumento é,
pois, dos gritos de socorro por anos silenciados.
No início do ano de 2007, há menos de um ano de
sua existência, fui contratada a atuar acompanhando a vítima em um caso de
violência doméstica. Seu nome não era Maria, muito menos Penha, e apesar de
ainda muito jovem, os anos de casamento ao lado daquele homem haviam feito ela
experimentar todos os tipos de violência que se possa suportar: sendo
constantemente humilhada, agredida física e verbalmente, vivendo diuturnamente
sob o medo e as ameaças, sofreu ainda a aniquilação moral e patrimonial, com o
desvio de todos os bens adquiridos no relacionamento para o nome de terceiros.
Assim, pela primeira vez, tive o prazer de atuar em uma vara especializada.
Havíamos ido apenas para dispor sobre as
agressões, no entanto, antes de sair do escritório, o meu sexto sentido
feminino disse “pega aquela sacola enorme que tem todos os documentos dela”. Eu
peguei, e ali, como que com mágica, saímos com tudo resolvido: agressão,
divórcio, guarda, alimentos e seus bens devidamente recuperados. Fomos embora
mudas, estarrecidas com a grandiosidade daquilo. Lembro-me de sairmos do fórum,
lembro dos nossos sorrisos de canto, lembro do vento em nossos cabelos, lembro
de ter subtraído por um instante todos os sentimentos dela e ter me apropriado
da sua incrível sensação de Liberdade.
Em Memoria de minha avó Elvira de Paula Machado,
que nos deixou, como um passarinho, no dia 07.08.1999.
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